quarta-feira, 20 de agosto de 2014

NAO ROUBEM NOSSA CULTURA




                                                                                     ADILCIO CADORlN*

Para sobreviverem, as culturas sociais se baseiam essencialmente na liberdade do indivíduo, na sua responsabilidade pela história da humanidade e no respeito à pessoa humana, devendo enfrentar  qualquer tipo de determinismo histórico, social, ou fatalístico. São estes os elementos básicos que  garantem a essência e a continuidade cultural de cada povo.

O indivíduo existe porque projeta a própria existência em projeto pessoal, que não pode, de modo algum, ser condicionado por regras de uma organização distante da  sociedade e das instituições  em que vive.  

Na imperante cultura centralizadora, vigora um gênero de determinismo para quem o partido, a classe social, o regime unitarista e o sistema representam as tendências inegáveis de uma história a quem o indivíduo não pode sobrepor-se, ou virá a ser esmagado, achatado.

A burocracia política e as instituições que governam o Estado, se arrogam no direito de exercerem todos os poderes sobre as pessoas, sobre bens produzidos ou herdados,  sobre a cultura do indivíduo, dele mesmo emanada por tradição ancestral, seja do grupo social ou do povo a quem pertence.

Por esta "casta de sacerdotes", também os povos, com suas culturas e línguas diversas, com suas variadas tradições cívicas, morais e religiosas, são tratados com a mesma medida com que tratam os indivíduos: não tem a saber direitos se não servirem ao projeto político do unitarismo  centralista.

A ditadura de uma só língua, o achatamento das expressões, pronúncias, dialetos e das correntes culturais diversas, é efeito da cultura dominante a partir da escola, com um corpo de professores burocratas, recrutados por àqueles que ensinam um gênero de "legião estrangeira" da cultura pronta a reprimir qualquer afirmação de liberdade e de autonomia.

Todavia, não podendo proceder por via da "aldeia global", que empurra ao engano universal da globalização todos os empreendedores, os poetas e os artistas, o centralismo  brasileiro inventa e importa, através dos meios de comunicação por ele alimentado, costumes novos, alienígenas. Mesmo assim, não conseguindo suprimir totalmente as expressões das nossas já existentes culturas e liberdades regionais que emanam do nosso apego telúrico, constroem guetos para perseguir e ofuscar cada afirmação regional original, através da chamada "cultura nacional", cuja maior expressão está estratificada no futebol, nas  novelas e nos programas de alienação coletiva, destinadas ao "povinho" e a todos aqueles  que consideram de  "ignorantes" demais  para fazer parte da restrita cúpula dominante, e para que, inconscientemente  esqueçam e sepultem definitivamente os seus costumes e tradições originais.

Quantos de nós ainda conseguimos resistir cultuando nossas origens, costumes e línguas açorianas, africanas, indígenas, asiáticas ou européias?  

Os patrocinadores do latrocínio de nossos valores ignoram os sotaques e expressões  nortistas, sulistas,  o "portunhol" e diversas outras expressões lingüísticas,  nativas e regionais; as lendas do saci-perere, do negrinho-do-pastoreio, de iemanjá, os folclores do  boi-de-mamão, do bumba-meu-boi; desdenham as sagas populares, as danças típicas regionais (sulistas, amazônicas ou nordestinas};  fingem desconhecer nossas artes plásticas, que dizem ser pobre e sufocam nossa diversidade religiosa. Com a peneira da cultura única,   escondem o sol de nossas diferentes culturas que, por não terem espaço ficam oprimidas e se esvaem no tempo, não permitindo ao cidadão os meios para identificar-se dentre a diversificada e rica cultura regional destes muitos brasis.

Não podendo recorrer a supressão física da cultura da massa excluída, a cultura pregada pelo centralismo brasileiro amealha, englobando-a em si, qualquer corrente boa para contrastar o pensamento político do verdadeiro federalismo, das autonomias regionais. Imposta pelos ladinos do sistema, é falsamente aberta: trata-se de uma desordem cultural, um "pastel" amalgamado por quem sabe, mas finge que não sabe, das muitas diferenças de nossas diversas etnias, culturas, tradições e costumes, renegando a vigência do principio de respeito à diversidade cultural prevista no verdadeiro federalismo.

Para o centralismo brasileiro, muito parecido com o russo, é direito do povo mais forte impor sua cultura amicamente os mais fracos, fazendo a exaltação de uma nação armada que oprime as outras. A diferença é que na Rússia o centralismo oprime com armas e aqui as armas são as redes nacionais de comunicação de massa, o Congresso Nacional e os mais de cento e cincoenta ministérios, departamentos, estatais, órgãos do executivo e todos os demais instrumentos do centralismo que praticam o clientelismo, a despeito de terem sua voracidade tributária alimentada com nosso esforço produtivo. Não satisfeitos, intrometem-se em nosso dia-a-dia  com descargas diarréticas de legislações que somente cerceiam nossas vocações e nos oprimem, alheias  às diferenças regionais, renegando a natureza do constitucional regime federalista.

Por essas pessoas tudo é homologado e em troca de favores econômicos, mudam a Constituição segundo suas conveniências e impedem as autonomias regionais, essência do autêntico federalismo. Impõem à sociedade amoldar-se às leis unitaristas, ao invés das leis emanarem dos costumes sociais regionais.

Quanto muito, julgam que todas as nossas diferenças podem produzir uma única  cultura, onde o indivíduo, a pessoa,  sua cultura, suas tradições, seus costumes, suas vocações produtivas, o seu modo de viver,  são sistematicamente desprezados e dispensados, sem jamais serem expostos e considerados.

 Para eles os valores regionais não existem, ou se consideram  sua existência, nos sufocam  com a imposição massificada das culturas enlatadas e alienígenas,  cometendo verdadeiro roubo dos valores em que se funda o verdadeiro federalismo: os usos, os costumes e a cultura de nossas regiões.  


                     *Advogado e membro do IHGSC - Instituto Histórico e Geográfico de SC

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

AMERICO CADORIN, MEU PAI !

                                                                                                                                              ADILCIO CADORIN*

    Nascido em Urussanga (SC), recebeu o nome de Américo em homenagem e agradecimento que seus pais devotaram ao novo continente que os acolheu. Iniciou desde  muito jovem seus primeiros trabalhos com seu pai na ferraria que possuía, aprendendo logo o ofício de ferreiro, atividade esta que já era exercida por seu avô Giovanni  Batista Cadorin, ainda antes de imigrar para o Brasil, quando residia nas montanhas alpinas de Igne, distrito  de  Longarone,  cidade do Veneto Italiano. 

De boné, com tres anos, entre sua mãe Carolina e seu pai Lorenzo, juntamente com as irmãs Madalena, Helena, e Rosa, tendo à esquerda sua avó, Maria Sachet Cadorin. Seus outros irmãos eram Albina, Maria, Iolanda e Orlando

Na ferraria de Urussanga, movida com a força da água canalizada do rio,  fabricou  ferramentas como foices, facões, martelos e outros,  principalmente picaretas, enxadas e pás, que eram destinadas ao uso nas minas de carvão da região de Urussanga e Criciúma. Concomitantemente, trabalhava com fabrico de vinho, na cantina que seu pai já havia iniciado anos antes de Américo nascer, apreendendo o ofício de vinicultor. 

Na ferraria de Urussanga, de roupa clara

   Sua escolaridade ficou limitada à segunda série de uma escola italiana, única que na época existia em Urussanga, o que, porém, não cerceou sua ânsia de conhecimento. Depois de adulto, não dispensava a leitura sobre vinicultura, história, política e principalmente de dois jornais que recebia pelo Correio e os lia diariamente: "O Estado", editado em Florianópolis (SC) e o "Correio do Povo", de Porto Alegre (RS). 

   Sendo jovem, de espírito empreendedor e inconformado com as poucas possibilidades de evolução que a pequena Urussanga lhe oferecia, após completar 17 anos, junto com outros três jovens da mesma idade, rumou para o Rio Grande do Sul. Viajaram a pé e no caminho trabalhou como cortador de pedras  durante o período de construção da estrada  da Serra da Rocinha, ligando Turvo (SC) à Bom Jesus (RS). Havia sido contratado pelo empreiteiro da obra, engenheiro Napoleão Ferraro,  que alguns meses após o transformou em seu mestre nesta obra e nas seguintes que contratou cm algumas cidades do Rio Grande do Sul, obras estas destinadas a captar e armazenar água para abastecer as residências  com redes de distribuição doméstica. 

 Em Caxias trabalhou como mestre da empresa deste engenheiro no saneamento hídrico, e com ele aprendeu represar, tratar e distribuir água, implantando usinas para produção de eletricidade com os excessos  das águas represadas. Naquela oportunidade, em vista da sua inteligência e vontade não só de trabalhar mas também de aprender, foi-lhe oferecido cursar engenharia civil. No entanto por ser homem que sempre valorizou a liberdade e independência, não aceitou tal oferta porque, em virtude da sua lealdade e honestidade,  se sentiria obrigado a permanecer ligado a empresa do engenheiro. sistema de tratamento e distribuição de águas encanadas  de Caxias do Sul. Mas especificamente, foi o mestre de obras da construção das barragens do complexo S. Pedro, S. Miguel e S. Paulo e da primeira rede de abastecimento de água tratada em Caxias do Sul. 

 Residia na então Pensão Peccini, que anos depois ficaria conhecida nacionalmente pelo seu inédito cardápio que servia polenta acompanhada de “galeto al primo canto”.  

Concluída e entregue o sistema, a empresa foi  contratada pela cidade de Santana do Livramento (RS), onde também  construiu o sistema de captação,  saneamento e distribuição de água.

Após um ano e meio, de lá mudou-se para Irai (RS), contratado que havia sido para  construir nesta  cidade idêntico sistema hidráulico, captando as águas do Rio do Mel, bombeadas  para a estação de tratamento e depois distribuídas às residências por uma  rede de encanamentos.      

A esquerda, montando moto/bomba para puxar água do Rio do Mel, em Irai.  
 
    Em Irai, hospedou-se na Pensão Itália, e auxiliou na construção do novo prédio, quando foi transformado  no Hotel Irai, que hospedava visitantes que buscavam tratamento com as águas termais e lamas sulfurosas que afloravam em suas fontes. Getúlio Vargas foi algumas vezes hóspede deste hotel de propriedade de seu sogro Ambrósio Dazzi.
     
 
Seu sogro Ambrozio Dazzi, de chapéu e lenço branco


Nesta pensão conheceu a jovem Adelina Dazzi, com quem casou-se e constituiu família  tendo os seguintes filhos:  Adérico nascido em  11/10/1933;    Arcério  em  02/06/1937  e  Aldira em  20/05/1941. 

Casamento de Américo e Adelina



    Durante os anos que residiu em Irai, trabalhou nos ofícios que conhecia, também dedicando-se a produção leiteira, introduzindo na região o gado holandês.

A Granja Esperança  suas matrizes leiteiras

  Depois voltou-se para a extração de madeira das matas da região, cujos troncos, após abatidas as  árvores, eram tracionados por juntas de bois até as barrancas do Rio Uruguai, onde compunham uma espécie de balsa, amarrando os troncos entre si com cipos, que ficavam aguardando as cheias do Rio. Quando o volume das águas aumentavam, montavam uma pequena  barraca sobre a balsa formada por centenas de troncos  e a soltavam para que a correnteza fizesse a balsa  navegar Rio abaixo,  até seu destino final, ou seja as serrarias vizinhas à Buenos Aires, na Argentina, onde eram vendidos os troncos. Neste ofício de balseiro do Rio Uruguai, levava cerca de trinta dias navegando, neste período permanecendo acampado sobre as balsas, guiando-as para que não encalhassem nas margens.    

Transportando madeira para Argentina, pelo Rio Uruguai.



Seus dois primeiros filhos: Adérico e Arcério






       Somente após o nascimento destes três filhos é que voltou à  Urussanga, em visita  a seus pais, tendo retornado em definitivo em 1943 com sua mãe já muito adoentada, que veio a  falecer quatro meses após sua chegada com a família em Urussanga.

      Com as economias que tinha guardado comprou metade da cantina de vinho de seu pai e com este ficou residindo até construir ele mesmo sua casa própria onde,  nos idos de  1946, a  equipou  com água encanada e aquecida através do sistema de serpentina (via fogão a lenha). Nesta casa eu, Adilcio,  nasci, em 03/06/1948,  seu quarto filho.

              Através de sua nova atividade como produtor de vinhos, foi adquirindo terras para plantio de vinhas e outras áreas para empreendimentos imobiliários nas cidades de Urussanga, Araranguá(SC) e Foz do Iguaçu (PR),  formando assim um patrimônio imobiliário.

                  Admirador dos ideais trabalhistas de Getúlio Vargas e ainda, sendo um homem de grandes qualidades humanitárias, construiu  um loteamento popular para os menos favorecidos financeiramente, para que tivessem a oportunidade de construírem suas casas e formarem  suas famílias. O pagamento dos lotes era feito de acordo  com as condições de seus adquirentes,  o que resultou que a grande maioria, mesmo sem ter pago seu terreno, jamais foram molestados com qualquer  tipo de cobrança ou pressão,  continuando como proprietários no local que hoje é o conhecido bairro da Baixada.

     Quando assumiu a gerência da produção de vinhos em virtude da avançada  idade de seu pai, introduziu o pagamento de gratificação natalina aos seus  empregados, anos antes de ser criada a legislação trabalhista que  instituiu o décimo terceiro salário. Foi presidente do PTB (na época um partido político muito pequeno em SC),  por mais de 15 anos consecutivos .

    Também foi delegado de policia. Neste período, quando ocorriam crimes leves (bebedeiras e  arruaças) e após serenados os ânimos, impunha aos autores, não a cadeia,  mas a hoje chamada pena social, com multa que era aplicada em forma de trabalho comunitário, o que lhe valeu conhecimento, respeito e agradecimentos dos infratores e seus familiares.

    Estimulado por seu amigo pessoal, Padre Agenor Neves Marques,  foi um dos responsáveis pela criação do Paraíso da Criança, instituição criada pelo Padre para abrigar crianças carentes e órfãos, em atividade até os dias atuais.  A mesma parceria resultou também na criação da primeira e única estação de rádio de Urussanga, que foi batizada como Rádio Difusora de Urussanga, hoje Rádio Marconi. 

   Em 1954, dado já a notoriedade e re
speito que lhe eram tributados, motivado pelo Padre Agenor e pelo então deputado Doutel de Andrade,  aceitou a candidatura  a prefeito pela coligação dos partidos PTB e PSD. Concorreu  contra Dr. Aldo Caruso Mac Donald , único médico da região que era apoiado pelo poder econômico e os partidos UDN e PRP.  Logrando-se vencedor,  foi empossado  prefeito Municipal de Urussanga, tendo exercido a função por cinco anos, de 1955 até 1960. Dentre suas inúmeras realizações como prefeito, destacaram-se: a construção de barragem, tratamento e encanamento da água para todas as residências de Urussanga; .o calçamento e iluminação publica das principais ruas da cidade; a substituição das pontes de madeiras por pontes de concreto sobre todos os dois rios que  cruzam a cidade e o apoio e estimulo à emancipação política de distritos de Urussanga, o criando os novos municípios de Morro da Fumaça, Siderópolis e Treviso.
 
Eu, de calça curta e "borboleta", acompanhando meu pai para posse na Prefeitura
Tomando posse sob o olhar do Padre Agenor


Não recebia vencimentos como prefeito, pois naquela época os municípios não possuíam receita própria e financeiramente eram totalmente dependentes do Governo do Estado. Como o Governador (Irineu Bornhausen) era de partido adversário (UDN), não haviam repasses de verbas regularmente para pagamento dos vencimento dos funcionários e das obras que estavam sendo feitas, o que o obrigou a executa-las com  recursos próprios, como por exemplo, a iluminação pública das ruas e da Praça Anita Garibaldi, calçamento de algumas ruas, barragem e rede hidráulica, dentre outras.   

 
Missa de Ação de Graças pela vitória e posse

 
Vistoriando o primeiro calçamento das ruas de Urussanga


  Com a instalação da Companhia de Cigarros Souza Cruz em  Tubarão (SC), os  agricultores foram desestimulados a cultivarem as vinhas, passando a plantarem fumo. Como consequência, os fabricantes de vinho de Urussanga ficaram sem matéria prima, obrigando-se a importar do Rio Grande do Sul (Caxias e Região). Mais tarde, o Governo do Estado do RS proibiu a exportação de uva in natura para fins industriais, o que o obrigou a mudar-se para  a região de Caxias do Sul,  no princípio de 1962.

Em julho  transferiu a residência para São Marcos (RS), onde em sociedade com a família Tomielo,  construiu uma cantina de pedra, às margens da BR 116, passando a fazer vinho, que inicialmente era vendido a granel,  em  barris e caminhões pipas,  remetidos para o Rio de Janeiro e S. Paulo.  Mais tarde criou a marca de vinhos “Lourenço”, em homenagem a seu pai, que passou a  ser comercializado em garrafões de cinco litros. Em virtude de desentendimento com familiares de seu sócio, decepcionado e bastante abalado,  em  dezembro de 1964  vendeu sua participação ao seu sócio e mudou-se para Caxias do Sul .

 Novamente residindo em Caxias, inicialmente, passou a trabalhar como ferreiro, construindo  móveis de ferro que eram vendidos em Porto Alegre. Depois dedicou-se a construção civil, especializando-se em edificar residências. Ainda em Caxias do Sul, vítima de um tumor cerebral, faleceu aos 62 anos, em 12/05/1970, onde está sepultado.

Móveis artesanais que produzia  com ferro
 Após seu falecimento,  a Câmara de vereadores de Urussanga homenageou-lhe  dando seu nome a rua onde havia residido e trabalhado na ferraria e  cantina de vinho, cuja rua passou a chamar-se  Américo Cadorin. Também em Caxias do Sul a Câmara de Vereadores homenageou sua memória denominando com seu nome uma das ruas do Bairro Universitário.


 Recentemente, a Prefeitura Municipal de Siderópolis prestou-lhe uma homenagem póstuma, em virtude dos serviços que, como Prefeito de Urussanga, prestou à causa da emancipação daquele Município. 
Américo em 1954, com 46 anos de idade

Nascimento:  14/05/1908 em  Urussanga (SC).
Filiação :        Lorenzo Cadorin  e Carolina Maffioletti (italiana)
Esposa:          Adelina Dazzi Cadorin
Filhos:      Adérico (advogado), Arcério (funcionário público), Aldira (advogada) e Adilcio (advogado)



* Filho do biografado, advogado e membro do IHGSC – Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina

sexta-feira, 6 de junho de 2014

AS ORIGENS DA SERRA DO RIO DO RASTRO, DAS CIDADES DE LAGES, TUBARÃO E A 9a. CAVALGADA PELO PICADÃO DA SERRA – MAIO/2014




ADILCIO CADORIN*

Quando no final do Século XVII, a procura de prata e ouro  os lagunistas  exploravam  a vasta “Terra de Ninguém”, que compreendia os territórios do atual Rio Grande do Sul, Uruguai  e parte de Santa Catarina,  a grande riqueza que encontraram foram imensos rebanhos de gado selvagem, que haviam se criado e proliferado naturalmente, a partir da sua introdução na Região Missioneira pelo jesuíta espanhol Cristóvão Mendonça Orelhana.

O sebo, o couro e carnes deste gado desencadearam levas de migrantes lagunistas, vicentistas  e imigrantes portugueses  que se fixaram neste imenso território, que se dedicaram ao preamento deste gado orelhano,  conduzindo-os para locais com aguadas e pastagens rodeadas de acidentes naturais, onde deixavam os animais “estarem” para posteriormente serem comercializados ou abatidos.  Logo, os locais onde os animais “estanciavam” deram origem às estâncias de criar, e as estâncias trouxeram mais povoadores, fazendo surgir diversas vilas e cidades que se criaram durante o século XVIII.

Foi  partir de 1767 que a região do “Continente das Lagens” iniciou seu povoamento, dando origem a Vila  de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens, que  foi oficialmente criada em 04 de setembro de 1770 pelo  bandeirante vicentista Correia Pinto.

Instalou-se, assim, este núcleo, como consequência desta corrida povoadora no período que ficou conhecido como a “Era do Couro”, posto este ser o produto mais valioso  extraído deste gado que havia se criado livre e sem dono. No primeiro momento, sua carne salgada foi destinada ao abastecimento das necessidades da força escravagista das fluorescentes capitanias hereditárias e incipientes cidades do Brasil Colônia. Num  segundo momento  seus couros passaram a ser largamente exportados para a Europa.

Lages comunicava-se com a Feira de Sorocaba (SP), na época, maior centro   consumidor de gado, pelo longo e  difícil Caminho de  Tropas, cujo gado e carretas eram tangidas em longas e extenuantes tropeadas. Na volta de  Sorocaba os tropeiros traziam os insumos e mercadorias necessárias e consumidas pelos estancieiros lageanos.

Para diminuir as distâncias, em 1771, Correia Pinto,  o  fundador de Lages, propôs à Câmara de Laguna para que as duas vilas unissem esforços abrindo um caminho, ligando o planalto ao litoral, permitindo que, através do Porto de Laguna,  Lages tivesse ligação marítima com os centros consumidores da Colônia e da Europa.  

Em virtude da demora da Câmara de Laguna  aderir a sua proposta, Correia Pinto  contratou as suas expensas  um  grupo de homens especialmente escolhidos para a abertura do que inicialmente se denominou como   “Caminho do Tubarão”, que na verdade era uma difícil trilha, principalmente no trecho que cruzava a Serra Geral, onde muitas vezes os tropeiros viam despencarem penhasco abaixo o gado e mulas carregadas de mercadorias  que conduziam. Daí  decorreu  a designação pejorativa  utilizada pelos tropeiros que este não era um caminho, mas um “picadão”, o  Picadão da Serra.

A partir de então, por este Picadão, os lageanos iniciaram a utilizar o Porto de Laguna para venderem a courama, os sebos, o charque e num segundo momento, os produtos  derivados, como arreios, queijos, manteigas, pinhas, lãs e diversos outros que produziam em suas estâncias.  Ao retornarem levavam nos seus cargueiros muares tecidos, louças, armas, munições, pólvora, ferramentas, cutelaria, sal, peixes secos, farinhas e toda sorte de mercadorias e produtos que consumiam em sua faina campeira.

O comércio destes produtos era feito com pagamento da moeda circulante, mais ou menos rara na época, o que motivava a prática do escambo, ou seja, a troca de mercadorias que, para facilitar e evitar que os animais cruzassem o Rio Tubarão, os lagunenses vinham com suas embarcações a vela e a remo para o Poço Grande,   local até onde seus barcos podiam navegar.

Ali, na margem do Poço Grande do Rio Tubarão era feita a mercancia e se consolidou  a integração do planalto com o litoral catarinense. Foi assim,  fruto desta integração  dos tropeiros lageanos  com os pescadores e comerciantes de Laguna que nasceu a hoje orgulhosa cidade de Tubarão.      

Posteriormente, este caminho, sendo largamente utilizado, sofreu diversas melhorias,  no seu traçado, com um sistemático alargamento  no decorrer dos tempos, dando origem ao leito da hoje conhecida  e serpenteada estrada  da Serra do Rio do Rastro.

Como forma de reverenciar toda esta epopeia histórica, a Ordem dos Cavaleiros de Santa Catarina promove anualmente uma cavalgada, de Lages a Tubarão,  percurso de aproximadamente 300 km.

Neste ano de 2014, sob o comando do Presidente Jose Sandrini, a Ordem dos Cavaleiros realizou a IX Cavalgada Pelo Picadão da Serra, que duraram oito dias consecutivos, percorrendo em média 35 km por dia a cavalo.

Presente nesta tropeada, tive o prazer de fazer companhia aos cavaleiros e amazonas de diversas cidades de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, como Torres,  Santa Maria, Canoas, Lages, Laguna, Urubici, Painel, Tubarão, Garopaba, Penha, Florianópolis, Palhoça, Imaruí, S. Ludgero, Grão Pará, Guabiruba, Brusque e Rio Rufino, todos com suas respectivas  equipes de apoio,  sendo acompanhados pelo cinegrafista Marcos Paixão, que registrou todos os momentos desta aventura para elaboração de  documentário a ser apresentado oportunamente pela TV UNISUL.

Saímos de Lages no dia 17 de maio e além de diversos povoados e distritos,  passamos pelas cidades de Painel, Urupema, Rio Rufino, Urubici, Grão Para, S. Ludgero e chegamos em Tubarão no dia 24. Evitando cavalgar por estradas asfaltadas, andamos por campos abertos, vales, serras e  trilhas. Batendo estribo e interagindo com a flora e fauna silvestre, atravessamos pinheirais, matas nativas, cruzamos banhados, sangas e diversos rios. Ao meio dia parávamos para descanso dos animais, para lancharmos a beira de uma sanga com uma  sombra para uma rápida sesta,  recomeçando a troteada logo após,  até o anoitecer.     

No percurso, fomos acolhidos pelas autoridades e tradicionalistas das cidades onde passamos, recebendo homenagens em reconhecimento a este  resgate da epopéia dos antigos tropeiros que deram vida a maioria das cidades por onde passamos.           
    

                          * Advogado, historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
                      Residente em Laguna – SC